quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Revolvida.

Esta noite andei
pelas ruas de Lisboa
e “calles” d’Espanha
pra me descobrir mestiça.

Moura d’África,
gema pernambucana,
cabeça chata,
perna fina, e muita,
muita gana,
(alguma preguiça).

Noite em que me vesti
de odalisca,
rompi correntes,
dancei samba;
porque enfim descobri:
meu coração é d’África,
das águas mediterrâneas!

Lá de onde tudo emana
e se explica
a cabocla urbana,
nem preta, nem branca,
mas cáustica: - saariana.

Nesta noite desvendei
a raiz mais profunda
do que nunca sossega
em minh’alma aflita
e sempre disposta
ao amor e à luta:

Fui a Portugal, a Espanha,...
dei n’África:
retornei mais humana.

(m. r.)

sexta-feira, 15 de julho de 2011

A Multidão Domesticada

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Hey, São Paulo,
Terra de arranha-céu,
A garoa rasga a carne,
É a torre de babel...

(Racionais)


Nada mais vago atualmente do que a expressão cultura de massa, nas ocasiões em que normalmente a empregamos. Na verdade, a falta de clareza não distingue mais falantes de ouvintes, todos perdidos no pântano do relativismo pós-moderno – ou pós-catástrofe (Kurz), conforme veremos. No final das contas, abusando da comparação, pode-se dizer que a incoerência se tornou tão natural e universal quanto a sua matriz histórica: o reino da mercadoria. No entanto, as palavras, a despeito de sua prostituição semântica, ainda guardam um sentido preciso, e histórico, que vale a pena rastrear.

O termo cultura de massa sinaliza o período em que a chamada atividade do espírito, ou necessidades espirituais, deparou-se, numa esquina da história (1), com o mercado, caindo assim, definitivamente, nas garras do capital. Na verdade, o contrário é mais plausível: o mercado esbarrou na cultura, e, sem dúvida, foi amor à primeira vista! Desse modo, a cultura, como toda mercadoria, não escapa de seu avesso inextrincável: o valor-de-troca. Aqui, normalmente, comete-se um equívoco. O traço distintivo mais importante da mercadoria, aparentemente, é o fato de destinar-se a um imenso mercado consumidor: os “expectadores”, a “massa”. Público indiferenciado, homogeneizado à força por uma colonização ideológica e desenfreada da vida subjetiva. Tal público existe, sim, e é imprescindível semelhante processo de reificação. Mas, também aqui, o fato mais importante é a alienação básica do âmbito produtivo.

Alguém poderia dizer: “É claro, como expectadores (de) formados, o povo deixa de ser produtor independente...”. Antes de qualquer coisa, é preciso saber que o “povo” nunca foi, a não ser de maneira relativa, um produtor autônomo de bens culturais (2). O fato é que a alienação do momento produtivo é o traço mais importante por uma razão muito simples: embora a “cultura” seja consumida em massa, invadindo, através da ideologia, os menores compartimentos inconscientes da cabeça das pessoas (moldando inclusive a personalidade e o caráter de muitos), por trás disso há especialistas, monopólio de conhecimento, controle de grandes meios de comunicação (que são meios de produção), e aquilo que talvez constitua o fato mais importante: produtores que seguem à risca as demandas do mercado.

Como se vê, a expressão “cultura de massa” não encerra facilmente o sentido total da coisa, sobretudo pelo que sugere a palavra “massa”. Há um pressuposto histórico que precisa ser desenvolvido, para evitarmos contrabandos de toda espécie – como, por exemplo, dizer que a cultura de massa é popular, pois a mídia... “Dá o que o povo pede”, segundo as palavras do “culto” (e cretino) Pedro Bial. Aliás, este último é exemplo daqueles que dirigem e controlam o processo produtivo. O estrago perpetrado por sujeitinhos desta espécie, atingindo milhões de pessoas, como diria o provérbio, “não está no gibi!”.

O exemplo “produtivo” do cinema:

O cinema, hoje, constitui um dos maiores representantes da arte enquanto mantenedora do status quo de uma sociedade à deriva. (Como diz Eduardo Galeano: há mais naufrágios que tripulantes nesta barca). Muitas vezes, entretanto, o cinema é analisado como uma máquina de imagens, cujo fim se resume nisso, desprivilegiando o enfoque sobre a formação desta própria “máquina” enquanto meio de produção: seu surgimento e necessidade histórica.

Em sua própria formação o cinema já era baseado na divisão de funções, grau de importância e hierarquia, deixando claro o lugar dos patrões e de seus subalternos. As massas de expectadores narcotizados, e não o filme em si mesmo, é o verdadeiro “produto final” deste processo. Claro, não se trata, necessariamente, de impor como regra a direção coletiva de um filme – o que, entretanto, não deve ser descartado enquanto alternativa de produção. Mas deveríamos indagar se a ausência de uma direção coletiva não seria uma das principais condições - hierarquia e profunda divisão do trabalho - para que o cinema exista como um dos principais meios de transferência de alienação, e, conseqüentemente, base da “cultura de massas”.

Diretor no topo, e produtor por cima: filmes apoiados com dinheiro público, não por renúncia fiscal, mas “leis de incentivo”. E, em outro caso, o produtor executivo (que pode ser o próprio diretor) ou apenas o patrocinador do filme: como no caso da lei rouanet, onde o dinheiro público é desviado para o setor privado, e o “artista” fica a mercê da empresa “patrocinadora”, embora, obviamente, seja refém também de sua própria incapacidade e imobilidade enquanto trabalhador. Exemplo disso é a torpeza da globo filmes: as bostas criadas por Wolf Maya, a “marca” Jô Soares, o “símbolo” Maria Bethânea, etc. Com toda a divisão do trabalho voltada para a produção de mercadorias (principalmente seu valor de troca), cria-se um ambiente em que a palavra "criação" só pode ser a expressão de um cinismo detestável ou uma triste ingenuidade.

Um cineasta conhecido conta um caso interessante: toda sua equipe é contratada. Não há um processo de conhecimento, pois ele mesmo já não acredita na possibilidade de reunir uma equipe que vise o trabalho, - não mais como meio, mas como fim em si e para si. Num dia de filmagem, em que se preparava para fazer uma bonita cena de futebol de várzea, o pessoal da técnica, antes mesmo de reunir os atores para a partida, começaram a desligar todos os fresneis, e guardar os equipamentos, pois... as horas de trabalho já estavam por ser excedidas. Óbvio: tudo que falamos até agora se encaminha para uma crítica também da exploração do trabalho, inevitavelmente. Mas, ao mesmo tempo, trata-se de trabalhadores que se levantam contra o filme, contra o processo de criação e experimentação estética, e contra um suposto “patrão”, que, na temática do filme em questão, por exemplo, pretendia falar, subliminarmente, a "favor" dos próprios trabalhadores. 

Nesse sentido, não se opunham ao diretor por conta da hierarquia, ou por acharem que estavam sendo explorados – embora estivessem de fato -, mas simplesmente por alienação. É aí que toda a dignidade do trabalhador vai por água abaixo, tornando-se, particularmente na produção artística, uma ferramenta de extorsão, devido à deseducação ideológica e o analfabetismo político de tais trabalhadores, no universo da mercadoria.

O exemplo mostra como a divisão do trabalho - sem a desculpa do processo criativo, quando, por exemplo, um ator não sabe o roteiro por intenção estética do próprio diretor - se estende à equipe cinematográfica, afunilando-se tanto, que não é incomum, num set de filmagem, a existência de técnicos que não sabem sequer o tema do filme que é produzido.

Uma questão de classe:

Mundo real, ou realities shows domésticos da burguesia cinematográfica?

Tamanha estrutura torna-se possível, também, porque as novas produtoras, mais ativas, são formadas pelas classes mais abastadas da sociedade. A maior parte – no Brasil e mais especificamente em São Paulo – são oriundas de duas das mais “expressivas” (do ponto de vista da mercadoria, claro!) escolas de cinema de São Paulo. Fato significativo é o valor pago por cada aluno nestas instituições: valores acima de mil reais. É um sonho tornarem-se objetos de fetiche, tais como aqueles que admiram. Mercadorias humanas. Mescla-se o modo de produção cinematográfico hollywoodiano, e o trejeito anárquico do cinema francês. Porém, ambas as influências se anulam, compondo um quadro bizzarro, movimento estranho, quase esquizofrênico.

A estrutura de exploração e dominação de classe de suas próprias famílias se transfere para o cinema, assaltando e monopolizando os meios de produção, para efetivar suas perversidades patronais sobre aqueles que julgam inferiores, mas, em todo caso, “importantes para o filme”. O maior sonho de uma produtora, advinda de uma destas grandes escolas, é ter uma equipe - não para o filme, mas para que possam, efetivamente, exercer comando, dominar como patrões. Reproduzem-se relações de classe bem datadas historicamente, mas disfarçadas por trás de um verniz modernizante. Tornam-se inalcançáveis, gritam, sobrepujam massas e massas de trabalhadores, e saem ilesos... Saltando para fora de seu círculo familiar habitual – onde a figura paterna é quem manda - e do marasmo autoritário do universo doméstico em que subjugam desde o jardineiro, passando pela empregada doméstica nordestina, até o tio pobre a quem dão “assistência”. Rédea solta, como se vê, para o tráfico de influências e relações de favor.

A produção atual – e nos é permitido generalizar, já que as exceções provam a regra -, sobretudo no Brasil, transfere as estruturas de dominação de classe e alienação das massas para o próprio processo fílmico, que, por sua vez, retorna para o público numa espécie de ciclo espiritual incontornável, depositando, mais uma e infinitas vezes, toda esta mórbida aridez no inconsciente das “massas”.

O Estado corrobora a situação com seus editais, direcionados para as panelas cinematográficas – isto é: às classes mais abastadas, aos estudantes de cinema de Higienópolis, atores consagrados, filhos de banqueiros, etc. -, cinco iluminados de Pernambuco, outros seis ou sete de São Paulo, alguns do Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, e fim de papo! Todos, com algum bom dinheiro público em mãos produzem aquilo que Jabor, acertando no alvo, caracterizou como:

“... essa merda que está contaminando o cinema brasileiro e dividindo-o em blockbusters filhos da última safra americana e em filmes que jamais serão vistos, com cineastas se enganando em pequenos festivais, na ilusão digital de que serão vistos para sempre na web - a nova forma de viver numa sociedade sem carne nem osso. Na maioria dos filmes americanos de hoje, os produtores nem se preocupam mais com o babaca do diretor e não deixam sobrar nem um leve resquício de arte invadir seus diagramas para faturar. O negócio é que minha geração sonhava com respostas para o mundo e não pode se contentar com mixarias, pequenos tweets, piadinhas inúteis e filminhos sem talento, só porque estão na rede e são os arautos de um novo tempo de irrelevâncias.”  (3)


O que devemos esperar? Um novo Glauber Rocha, circulando nestas classes? É este o quadro da atual produção cultural.
                    
Perdeu-se de vista o sentido – sempre frágil - da cultura brasileira. Todos enfiados e locupletados no mito da globalização. Imagens que acabaram, se desgastaram, mas perambulam mortas no interior da consciência das pessoas, e, por extensão, na tela de seus visores mágicos. Artistas que não passam de vermes dominantes, pseduo-sensiveis-pós-modernos, que querem ser iguais aos seus próprios objetos de fetiche. A prostituição não precisa ser carnal. Trata-se, antes, do espírito e da saúde mental das pessoas.

Efeitos Catastróficos:

Devemos reconhecer, agora, os efeitos concretos ou empíricos, deste estado de coisas num nível mais geral. É praticamente impossível que os indivíduos atinjam um grau de passividade maior que o atual, enquanto células idiotizadas do processo produtivo, a não ser que perdessem até mesmo a existência física. De fato, para muitos a existência física tornou-se uma fonte incalculável de sofrimentos. Além disso, poderíamos catalogar, principalmente no Brasil, a variedade de modos diferentes de paralisia, pelos quais as pessoas literalmente vegetam. Isso ocorre, por exemplo, naquilo que poderíamos chamar o “ventre ideológico” da sociedade atual: a internet. Gestante de ideologias altamente suspeitas.

Claro que o processo de anomia pode intensificar-se a ponto de romper o tecido social, diluindo os vínculos mais elementares de sociabilidade, como sugere a epígrafe do texto, ao referir-se a São Paulo como uma Torre de Babel. Na história bíblica, sabe-se que esta é a torre do desentendimento, a ausência total de comunicação devido à quantidade infinita de línguas faladas por seus habitantes. Cada indivíduo, um país!

A grande questão, conforme nos ensinou Debord, é que os despojos ideológicos não permitem mais identificar a fronteira entre o mundo real e as ficções dos realities shows, das telenovelas, ou, por que não, para não perder a oportunidade, as ficções da própria academia. Podemos ainda mobilizar outros aspectos e conhecimentos da atualidade, como, por exemplo, o urbanismo.

Os grandes centros urbanos dão mostras diárias do nível de vida das “massas”, desde as menores relações interpessoais, passando pelo acúmulo catártico de automóveis, até a especulação imobiliária cega, em que a construção de imensas favelas determina-se pelos caprichos e flutuações do mercado. Tamanha catástrofe não poderia prolongar-se sem o controle exercido pela propaganda e pelos grandes meios de comunicação. A imagem de macro-favelas exibidas diariamente nos telejornais não se diferencia em nada dos casos amorosos da protagonista da novela das oito. É preciso prevenir novamente: os agentes que atuam na perpetuação cega deste modo de produção não são fantasmas, existem, e foram parcialmente identificados.  

De fato, não é muito sensato supor que a situação atual por si só fará com que as pessoas reajam. Dos textos do alemão Robert Kurz pode-se retirar um consolo paradoxal nesse sentido. Mas, como não há consolo onde existem “paradoxos” (isto é: contradições que desencadeiam processos de crise), e como, por outro lado, consolo é sinônimo de enfraquecimento de consciência nos tempos que correm – e isto nós não queremos -, cabe lembrar, aqui, o desconsolo de Kurz. Segundo o alemão, o capitalismo dá os seus últimos suspiros; seu fim estaria mais próximo do que se imagina. Ora, como isso é possível no auge de sua auto-promoção? Ou, por outras palavras: se nada aconteceu, como pode findar-se? Justamente... mas, que o leitor tire suas próprias conclusões.


Notas:

1 – Termo sugerido pelo título do livro de Valério Arcary, “As Esquinas Perigosas da História”, em que o autor enfatiza, em linhas gerais, a variação de ritmo dos processos históricos, sob a força propulsora e irreprimível da luta de classes.

2 – “No capitalismo não existe classe que, por sua posição produtiva, esteja voltada para a criação da cultura. (...) Da mesma maneira que a independência dos homens das preocupações de sustento imediato e a livre utilização de suas próprias forças como fim em si são as condições sociais preliminares à cultura, assim, tudo o que a cultura produz pode ter valor cultural autêntico só quando tem valor para si. No momento em que assume o caráter de mercadoria e entra no sistema de relações que o transforma em mercadoria, cessa sua autonomia, e a possibilidade da cultura”. (Georg Lukács, “Nova e Velha Cultura”).

3 – “Queremos ser modernos ou eternos?”, Arnaldo Jabor, O Estado de São Paulo, 12 de Julho de 2011.



João Rodrigues e Danilo Santos.

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sexta-feira, 8 de julho de 2011

Marcha da Liberdade

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A “marcha da liberdade” originou-se de uma reação contra a repressão ocorrida na “marcha pela legalização da maconha”. O “movimento” tornou-se consciente dos métodos utilizados pela polícia. De uma marcha à outra há uma diferença qualitativa fundamental. A segunda, “contra a repressão”, é infinitamente mais abrangente que a primeira.

De fato, a ação truculenta da polícia projetou a manifestação na grande mídia. Mas, entretanto, a polícia não sai desmoralizada, já que, obrigando os jovens a levantar-se contra a repressão, revelou a ingenuidade desses mesmos jovens, que precisaram tomar lambadas na cabeça para descobrirem que a repressão existe pra valer, e não se faz de rogada frente a angelical poesia dos pacifistas.

A eloqüência dos manifestantes, o charme libidinal do discurso libertário, o corre-corre em via pública, tudo isso, levaria qualquer desavisado a pensar que a intolerância é fato inédito por estas bandas. Claro que a luta contra a repressão está na ordem do dia. Exatamente por isso causa estranheza o aspecto carnavalesco inquestionável da “marcha pela liberdade”. Estética pura, talvez. As reivindicações são absolutamente legítimas: liberdade no sentido elementar, democrático do termo. Está escrito na constituição.

Mas, a impressão é que os fatores decisivos da criminalização, como os problemas econômicos mais profundos, perderam terreno para a questão puramente moral. (Por “problemas econômicos”, entenda-se, por exemplo, o desemprego e o trabalho informal no Brasil, de que o tráfico de drogas é consequência direta). Tem-se a impressão de uma revolta juvenil contra uma proibição paterna. Arenga de criança inconformada.

Quanto ao aspecto da festividade, já é possível ouvir o argumento em nome da alegria, do poder contagioso e transformador da arte circense, ou o transe ritualístico do amor-astral, e outras coisas do tipo, mais ou menos esotéricas. Ouvi tais coisas da boca de um manifestante - por sinal, um dos organizadores do evento. Ora, as lutas políticas - dizem - não são necessariamente sérias. É preferível o apoliticismo à seriedade! Que seja. Devemos esperar, entretanto, que semelhante ideia caiba na consciência exausta da grande maioria da população, que, às sete da noite, cochila num ônibus, ou num trem lotado, voltando outra vez para a indigência daquilo que costumam chamar de "descanso" – miséria de todo dia.

Dizem que não é possível criticar tais marchas por seu caráter “espontâneo”, “natural”, etc. Argumento totalmente falso, revelador, entretanto, da bizarrice política que é a organização de tais marchas – “aparecem” como que brotadas do chão. Até essa aparência de espontaneidade, entretanto, é conseqüência de um tipo específico de organização – que faz lembrar, nesse sentido, a marcha para Cristo: venha, basta ingressar! É Procissão!

O fato é que, aos olhos da grande maioria daqueles que “marcharam pela liberdade”, uma crítica mais severa parece-lhes absurda, inadmissível, sem que consigam, entretanto, fundamentar qualquer defesa. Síndrome de uma sociedade virtualizada, em que o acesso às questões mais importantes da vida é impossibilitado por uma camada de informações inúteis, em que o imaginário social transforma-se num reservatório infinito de ideologias descartáveis, que, acumulando-se diariamente, produz a estranha impressão de estarmos a viver num mundo fictício, estetizado, narcotizado, etc.

Não temos o direito, mas o dever de criticar estas manifestações políticas da juventude. Não se trata de que lado estamos. A polícia é treinada para o extremo, pro que der e vier. E sabemos todos para quem o Governo trabalha. A questão, exatamente por isso, é que tais marchas são organizadas por filhos legítimos de uma classe-média entorpecida, deslocada na vida cotidiano e incapaz de perceber a miséria insuportável em que vive três terços da classe trabalhadora, acossada em regiões periféricas da cidade e do país. Bolsões imensos de miséria.

Que a “marcha da liberdade” é uma bolha, não resta a menor dúvida. Mas não deixa de ser legítima enquanto negação, mesmo que frágil, da miséria atual. E também por concentrar uma das camadas mais ativas e importantes para o destino de qualquer sociedade: a juventude. Fazendo valer essa importância é que devemos criticar toda e qualquer estetização da política, que mais afasta do que aproxima a população das ruas. Sem dúvida, nós, a juventude, podemos infinitamente mais do que isso. Mas hoje, infelizmente, o que falta é coragem para nos desligarmos definitivamente dos hábitos e confortos absolutamente dispensáveis, e aparentemente inofensivos, da classe-média covarde deste nosso país.


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terça-feira, 12 de abril de 2011

Espanto

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À memória de João Cabral,
esse espanto cerebral.


Pra poesia há, pelo menos, três fontes vistas.
(e um bilhão de outras entrevistas).

- O poeta que somos,
  Assim, inerentemente.

- Os poetas que lemos,
  Impregnados na gente.

- E o respeito à vida,
  Diamante-mente.


Se a última não fosse, talvez, a mais importante, 
não seria necessário dizer o quanto faz falta!


(João).

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domingo, 10 de abril de 2011

Profecia do Abraço.

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Mais súbita que a peste negra
E mais cigana que a gripe espanhola
Será a epidemia de saudade.
Sôdade.

(Cuidem-se todos)

Todos, de repente enlaçados,
Atracados, atados, braços-dados...
Não perto mas dentro da vida,
De seu Coração Selvagem.

Grandes líderes serão os poetas
Orientando as massas:
“- Por favor, salvem primeiro os fracos!
   nos salvem...”

(Só as crianças estarão a salvo!)

No dia seguinte
Quem evitará o embaraço?
Tantos e tantos séculos, - milênios
de sofrimentos e desgraças...

- Pra quê?

(Apesar de tudo ainda grassa, a vida-Graça...)

Pois Tarde é sempre Tempo,
Dentro do mau tempo
vive, eterna, a profecia -
do Abraço.


(João)


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domingo, 20 de março de 2011

Realismo do Grotesco em ‘Almas Mortas’ de Gógol.


“Todos nós saímos de Gógol”.

(Dostoievski).


O conhecimento da vida cotidiana da Rússia no séc. XIX, em seu mais remoto e variado matiz, só a literatura pode fornecer. Mas, no caso de Gógol, por exemplo, sem um conhecimento histórico mínimo de fundo, acharíamos, talvez, menos graça na caracterização mordaz de seus personagens: sempre abusivos e despóticos. Aos bandidos tudo se perdoa frente à “ingenuidade” de seus métodos, fingindo-se ignorar, inclusive, a natureza pouco angelical de seus propósitos. Nesses termos, como não pensar no Brasil: a essência da lei é a infração da lei.

Reconhecemos pegadas machadianas na ironia de Gógol, ou mais propriamente o contrário. Talvez seja maior o acabamento na construção dos romances de Machado, em que a elaboração formal desvela de forma sutil, quase sem pretender, mecanismos psicológicos de classe. Já em Gógol há uma “pretensão edificante”; uma espécie de “ auto-comiseração” do narrador, ausente na narrativa machadiana. Em Gógol o narrador jura não sentir a menor vergonha frente a “fraqueza” de seus personagens, apesar de ser inútil o chamado à redenção moral após a exposição de quadro tão decadente. Nas últimas páginas de “Almas Mortas”, por exemplo, o narrador torna-se “sério” e cobra responsabilidade cívica dos leitores; mas, vale dizer, é tarde demais: a qualidade do próprio romance já não admite a seriedade.

Há muitos outros traços de “Almas Mortas”, tal como a lógica da mercadoria mediando as relações humanas, quando, por exemplo, compara-se os personagens com coisas inanimadas e animais - pedras, casas, empadas de frango, cavalos, etc. Ou a realidade externa, o nível espacial da narrativa, em que as diferentes localidades refletem o caráter de seus proprietários; irradiando-se inclusive como elemento definidor de personagens menores, principalmente camponeses (mujiques), que gravitam à sombra de seus donos, os “grandes”; etc. “Almas Mortas”, em suma, é a trajetória do personagem Tchitchikov, senhor proprietário de muitas almas de camponeses, “Consultor Civil do Estado”, que passa pela casa de diversos outros proprietários com um interesse comercial um tanto mórbido e obsessivo: comprar almas de camponeses mortos; para constar numericamente, ou por sandice de “colecionador” – só ao fim do romance sabemos seu real interesse.

Apresento alguns trechos da obra, que talvez façam sentir a força e a ironia desse grande realista.

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O narrador nos apresenta Nosdriov, figura que o herói conheceu em sua jornada:

“De certo modo, Nosdriov era uma personagem histórica. Nenhuma reunião de que ele participasse acabava sem uma história qualquer, tanto que ele, ou acabava a reunião de “braços dados” com a polícia, ou os próprios companheiros eram forçados a empurrá-lo para fora. Ou embebedava-se até ficar reduzido a um riso ininterrupto, ou então acabava com vergonha das próprias mentiras. E mentia sem a menor necessidade: de repente, contava que tinha um cavalo de pelo azul ou cor-de-rosa, a ponto dos ouvintes acabarem por se afastar dele, dizendo: “Eh, meu velho, estás passando da conta” (p. 85)

Assim era Nosdriov! Quem sabe dirão que ele é um tipo superado, que Nosdriov não existe mais hoje em dia. Infelizmente, não terão razão os que assim falarem. Nosdriov ainda permanecerá por muito tempo nesse mundo, e não será fácil exterminá-lo. Ele está entre nós por toda parte e, quiçá, apenas traja uma casaca diferente; mas os seres humanos são superficiais e pouco perspicazes, e um homem de roupa diferente, lhes parece um outro homem”. (p. 86-7)

Já aqui, o narrador descreve uma “agregada” do Sr. Sobakêvitch, proprietário ao qual Tchitchikov está em visita com o objetivo de arrematar mais algumas “alminhas” de camponeses mortos:

“Para o quarto lugar na mesa logo surgiu uma, é difícil definir com segurança, senhora ou senhorita, parenta, governanta, ou simplesmente uma agregada da casa. Há certos indivíduos que existem no mundo não como um objeto, mas como pintinhas ou manchinhas sobre um objeto. Sentam-se sempre no mesmo lugar, mantêm a cabeça na mesma posição, são quase tomados por peças de mobiliário; e no entanto, em algum recanto, principalmente na despensa ou na cozinha, descobre-se que... oh meu deus, oh!”. (p. 115)

O narrador descreve agora o anfitrião Sobakêvitch:

“Parecia que naquele corpo gigante não existia alma nenhuma, ou, se existia, situava-se não no lugar devido, mas, como um bruxo, a alma está envôlta numa casca tão grossa que como quer que se movesse no fundo daquele corpo não conseguia produzir qualquer comoção na superfície...”. (p. 116)

Por fim, o próprio Tchitchikov, tão mesurado e simpático com Sobakêvitch, formula “mentalmente” sua opinião a respeito do mesmo, vendo-o “pelas costas”, por assim dizer:

“Quando olhou para aquele costado que ia na sua frente, amplo como o lombo de um cavalo, e para suas pernas que pareciam os postes de São Petersburgo, não pôde deixar de exclamar mentalmente: ‘Será que já nasceste assim, urso, ou ficaste ursificado com a vida neste buraco distante, amofinando seus mujiques com sua avareza, e por causa de tudo isso te transformaste no que se costuma chamar de unha-de-fome”. (p. 120)

(Nicolai Vassílievitch Gógol, Almas Mortas, Abril Cultural, 1972)


(João)

domingo, 6 de março de 2011

Aedos Modernos

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A "normalidade" dos dias é um véu que encobre as verdadeiras leis do tempo. “Para tudo há seu tempo”, é uma frase esvaziada de sentido, e este vazio preenchia-se outrora pelo lugar agora vago da poesia. Ambigüidade desgastante, sem dúvida, mas, quem consegue hoje em dia tratar de literatura a não ser pela crença inconsciente de que ela compensará a monotonia dos fatos? Sabe-se que a ironia é a forma defensiva de que se reveste a verdade quando ninguém lhe dá ouvidos, nesse sentido, afirmo: e nunca a vida teve tanto poder sobre a arte!

As pessoas lançam-se de testa contra a vida, sem mirá-la nos olhos, engolindo-a por meio de ações definitivas e sem volta – como se a incoerência fosse caminho reto para a felicidade. Disse Guimarães Rosa que o nada é uma faca pouco afiada e sem cabo. Trata-se de uma redundância, claro: faca pouco afiada torna-se, toda ela, cabo; logo: não é faca. A repetição do óbvio transforma-o em novidade, por isso lanço mão de uma obviedade para vencer os recuos do niilismo contemporâneo, e digo: a literatura perde cotidianamente seu lugar na vida!

A contradição ilumina: seria instrutivo aproximar a conclusão dos dois últimos parágrafos.

É nesse cotidiano que se debate o poeta. A violência menos brutal é apresentada como alternativa á brutalidade generalizada. Mas, o que seria “violência menos brutal”? O poeta entoa seu lamento lavado à cafeína num canto escuro de alcova, mas -saibam todos- não são problemas habituais de maioridade poética: simplesmente torce para que o fim do dia não leve consigo a consciência e a luz de seu ofício  – que o tédio lhe seja piedoso.


João.

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O Grande Individualista

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Todos nós, como Mário de Andrade, estamos cansados de assombrações. Por isso ele dizia que há muito tempo não temia – nem podia temer - os gigantes. No folclore as lendas sofriam de escassez imaginativa e perdiam suas cores. Mas, fora isso, andava pela metrópole paulistana um outro tipo de assombração, de dar medo: o individualismo. Por estranho que pareça, Mário, que tinha enfrentado o medo do escuro, tirava notas harmoniosas, loas e versos sublimes no isolamento individual..

Sem dúvida que as preocupações artísticas, sociais e históricas convivem com o temor da loucura no isolamento. Não se trata, entretanto, do mesmo problema, já que, ao contrário, sabe-se muito bem que estão desencontrados e ameaçados de divórcio. Aí está a assombração. Mário de Andrade habitava o centro desta discórdia: a ética sempre cobrando atitudes duras, e a compreensão da própria miséria pedindo que sejamos amáveis. Desafio bom para almas halterofilistas.

Permito-me citar um exemplo numa “croniquinha” do autor, intitulada “Pessimismo Divino”. Mário defende abertamente que a linguagem é incapaz de expressar a totalidade da vida sensível. Como se fosse naturalmente esta sua função, tenta nos convencer de que a linguagem é uma forma de organizar e complementar a vida sensível. Novamente, só os bobos veriam nisso uma influência dos empiristas ingleses, ou coisa do tipo. Há uma força, um conflito, como queiram chamar, que conduz linearmente o questionamento do significado da arte para a reflexão sobre a linguagem, desta para experiência empírica e, finalmente, dirigindo-se para famigerada... experiência individual!

Coisas muito pouco inteligentes são ditas atualmente em cima desta mesma visão, tais como: a obra de arte só pode ser entendida pela singularidade do olhar individual; a arte é somente espontaneidade e impressão; só os pretensiosos tentam racionalizar a arte, etc. Mário de Andrade não chega a tanto. Preferia acreditar que não existe espontaneidade absoluta, ou seja, que a linguagem não possui a função de instrumento individual auto-operacional, mas, ao contrário, é uma manifestação social objetiva.

É que, em relação aos conservadores que pretendem amarrar a criação com “formalismos de latrina”, torna-se necessário defender o inefável, o sensivelmente inexprimível da arte. Redescobrir a individualidade que resiste à deformação pela compreensão histórica e social da vida. Assim era pouco mais ou menos um grande individualista (no sentido de independência e honestidade de opinião): sempre enfrentando o perigo da verdade, que é uma bomba lançada na mão dos outros com a esperança de que reste alguma coisa de útil depois da explosão...
         

João


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Emergência

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Há gestos não praticados
linguagem cifrada dos ventos.
Tão longe já vai o tempo
no qual não fomos iniciados...

Quantas cabeças desconhecem
o deslizar calmo dos dedos...
As cabeleiras sempre nascendo
e não há jeito de devassá-las.

Imperfeição delicada das faces
agravada por mãos inibidas.
Ternura pra sempre aplacada
na solidão vazia dos dias...

A nós, que a compreensão distingua as intenções
das consequências, apesar de tantos desmedidos...

que a força bruta jamais convença,
nem seduza os desprevenidos...

Distraídos, não venceremos!

 
João.

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sábado, 5 de março de 2011

Mulher em Três Tempos. (Murilo Mendes)

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Minha boca está no presente,
O meu olhar, no passado,
Meu ventre está no futuro:

Minha boca está na boca
Do meu marido atual,

Meu olhar está no olho
Do meu namorado antigo,

Meu ventre está no futuro
Do corpinho do meu filho.

(Murilo Mendes)

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sexta-feira, 4 de março de 2011

Mulher Vista do Alto de uma Pirâmide. (Murilo Mendes)

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Sendo março o mês “da mulher” postarei alguns poemas de Murilo Mendes à sua homenagem. Deveríamos desconfiar, entretanto, das verdades que dependem de datas fixas! Data de relembrarmos as mulheres? Homenageá-las por sua importância na vida? Nesse caso, então, a própria vida presta-lhes suficiente homenagem, que, como tal, dispensa o calendário.

Dizem que a poesia é bonita quando “rara”. O problema é que o “raro” em arte, normalmente, é o óbvio trazido à tona: beleza que o poeta resgata indicando sua necessária permanência, apesar da realidade ocultá-la continuamente. Deveríamos acrescentar, quem sabe, uma questão simples toda vez que somos assaltados pela beleza de um verso, de uma música, etc: "Se é tão óbvio, o que impede todos de ver?"  -  Enfim... Murilo Mendes:

Mulher Vista do Alto de uma Pirâmide.
                                     
Eu vejo em ti as épocas que já viveste
E as épocas que ainda tens para viver.
Minha ternura é feita de todas as ternuras
Que descem sobre nós desde o começo de Adão.
Estás engrenada nas formas
Que se engrenam em outras desde o começo dos séculos.
E outras formas estão ansiosas por despontarem em ti.
Quando eu te contemplo
Vejo tatuada em teu corpo
A história de todas as gerações.
Encerras em ti teus ascendentes até o primeiro par,
Encerras teu filho, tua neta e a neta de tua neta.
Mulher, tu és a convergência de dois mundos.
Quando te olho a extensão do tempo se desdobra ante mim.


(Murilo Mendes)



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Soneto para os Gatos.

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No mundo das bestas-feras,
O Homem, este seu dono,
Inveja-te o segredo dos justos:  
Sultão supremo do sono. 

O gato é uma esfinge,
Para o mármore que somos.
Salta, corre e olha:
Como as eras passam, Eros.

Pouco importa se passamos.
O homem assim resvala,
Às cegas, ressenti dor:

Recolhe mole, de repente,
Na malha do incrível sempre,
O feto morto do amor.


(João)
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