terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Neguinho

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Meu neguinho tem medo de ser baiano.

diz que, pra lá...
só tem tosco carregador.
diz que, de lá...
só vem sonso sem protetor.
atrapalhador, dos afazeres do mundo-cão.

pra onde chego é donde venho?
e donde venho, doutor, é o que fica?

o Dono da comida, esse que ria, falou:

- Neguinho sem-vergonha, sem prestança,
volta pra tua casa que nem casa tu tem!

deu vertigem
deu vergonha
em mim, e no neguinho.
lufada abafada de lágrima na venta.
chorei, fundo:
eu sou o neguinho!

é de ódio doutor! é de ódio!
baixo firme, nos olvido do neguinho:

- Neguinho é do mundo!
neguinho nem dono tem.

neguinho sorriu.
por isso o poema termina.


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segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Chuva

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Êh vazante,

esboroa as envergaduras do céu
nuvens
sem retidão de continência
milenar aguaceiro
refrigério
dos sofrimentos alados
a molhar meus pés
os telhados
enchendo-nos a cabaça
de sonhos marinhos.

Enlanguece-dor,

milagre
que se repete
e jamais padece
déficit, de mistério.

se deixa de sê-lo
não o céu
mas nós:
incapacidade de vê-lo.

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domingo, 19 de dezembro de 2010

Noites Capitalistas

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Periferia: corpos vazios e sem ética, 
lotam os pagodes rumo à cadeira elétrica.
Eu sei, você sabe o que é frustração: 
máquina de fazer vilão. Eu penso mil fita,
vou enlouquecer...


(Racionais – “Jesus Chorou”)



O título desta crônica deve-se a uma reportagem que o Jornal da Globo transmitiu dias atrás com o seguinte dizer: “As noites da China comunista são noites capitalistas”. A ironia do título é ainda mais “profunda” no próprio conteúdo da reportagem, que, visando atingir mais uma vez - nunca é tarde! – o “sonho comunista”, fez uma advertência essencial à vida do homem sobre a terra: noites capitalistas são divertidas e felizes; noites comunistas são tristes e obscuras. Imagens monumentais da cosmopolita cidade de Pequim: iluminada... prostituta de luxo! A felicidade pode ser comprada; o brilho ofuscante do níquel reluz nos olhos embriagados da turista francesa... lição de moral! Aprendam de uma vez: o capitalismo venceu, e era tão impossível acontecer o contrário que até mesmo um país dito comunista rendeu-se aos seus encantos: “rendam-se, sou irresistível, sou bom!”. Era este, em suma, o conteúdo da reportagem. Mas, porque homens tão bons insistem em cutucar o pobre cadáver do comunismo? Piedade ao morto é o que peço. Ah, sim, para saber se a vida noturna de Pequim é atraente, basta citar a definição da reportagem: “Uma mistura de Nova York com Las Vegas”. 

Observar a vida noturna de uma cidade é uma boa maneira de conhecê-la. Pequim, por exemplo: pessoas vazias, fúteis e desesperadas, em suma, mercadorias humanas (mercadorias humanizadas; humanos mercantilizados, tanto faz). Trotsky afirmou que os grandes centros urbanos são a imagem histórica mais acabada do capitalismo: por um lado a força monstruosa do Capital, com suas estruturas de concreto armado, por outro, seu resultado mais lastimável e inevitável: a indigência, a indiferença, o auto-anonimato, a miséria... A globalização, entretanto, inaugura sim um período de certa igualdade. Afinal de contas, a miséria espiritual e ideológica dos centros expande-se mais e mais para as periferias; e, por outro lado, a miséria material destas ameaça invadir os grandes centros financeiros do Mundo. É olhar para a África e ver o dia de amanhã de todos nós, parafraseando Marx, que, há mais de um século atrás disse que bastava olhar a Inglaterra para ver o futuro de outros países.

Em São Paulo, centro financeiro da América Latina e um dos maiores do mundo, as “noites capitalistas” estão muito longe das madrugadas prometidas pelos poetas. Não há cancioneiros ao luar, nem garoa romântica, nem tampouco as luzes ofuscantes e os cenários iluminados das noites cinematográficas de Las Vegas. Uma simples caminhada é o suficiente para vermos os fantasmas que circulam no submundo e nos guetos da legalidade. A rotina mói as pessoas de dia, e, de noite, com a violência, o medo, a tensão, aproveita-se melhor o bagaço. É lícito perguntar: será que as dezenas de milhões de operários superexplorados da China "comunista" freqüentam as “noites capitalistas” de Pequim?
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sábado, 18 de dezembro de 2010

Simples

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Tinha 60 anos, trabalhava desde os 15. O caso produz alguma perplexidade. Adoeceu de câncer profundo. Ás dores da própria doença somou-se a tortura do tratamento médico. Enfim, todo o peso insustentável da vida, mas nunca, jamais uma lágrima; uma manifestação sequer de desespero; quando vinha o Sol, quando via as crianças na flor da idade... Nada!

Ora, é de supor que tudo relacionado à vida faça sofrer a um moribundo. O medo, a vontade de findar-se de vez, a incerteza de um milagre impossível. Mas nada, absolutamente nada. Nunca manifestou grande entusiasmo e apego pela vida; porém não parecia incomodar-se grandemente com o que quer que fosse. Ajustado. O poeta diz: “A esperança equilibrista”. Equilibrista é a forma de estar no mundo de certos homens, para os quais a vida é um fenômeno reto, função de subsistência: já que estou, então serei. Nada mais, nada menos.

Se a família se punha de luto, isto o irritava, pois não queria ser a origem do sofrimento alheio. Se os outros se fingiam de alegres, aí então se engolfava no relho. Até nisso, também, era ainda o mesmo de sempre: sério e quieto. Os animais, naturalmente, eram sua melhor companhia. Reparem, entretanto, no termo “naturalmente”, pois dessa forma a serenidade não é um fim para o qual existiam meios..

Indaguei-me durante algum tempo sobre o que se passava na consciência deste homem. Reparei, finalmente, que nada do que era exteriormente traía sua consciência mais íntima. Era o que parecia de fato. Um alívio. Alívio de saber que a profunda dignidade da existência pode vencer facilmente a vaidade mórbida na qual nos rastejamos. Talvez soubesse de coisas que costumamos atribuir somente a criaturas iluminadas pelos descaminhos da filosofia, por exemplo. Mas, naturalmente, ele, não sabia muito bem que sabia. Soldados desta estatura é o que não falta no mundo. E isso é bom de saber.

Intolerância

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Na madrugada desta segunda-feira quatro jovens saíram para se divertir em São Paulo. Nada mais comum que isso, exceto pelo divertimento escolhido: caçar homossexuais, literalmente, e espancá-los. É inútil perguntar como alguém pode “resolver” divertir-se dessa forma; a pergunta correta é essa: “Qual o nível mental dessas pessoas?”. Trata-se mesmo, seguramente, de uma incapacidade de decisão, da inexistência absoluta de humanidade.

Este tema do fascismo é importante, pois - além da obrigação de o denunciarmos incansavelmente - possui uma particularidade atual: reveste-se de diversas roupagens diferenciadas, justificativas paradoxais, e, até mesmo, humanistas. Não se trata, portanto, de apreender e desmascarar as formas variáveis que toma, pois, nesse caso, é provável que nos perdêssemos num pântano infinito, para além de quantas são as formas reconhecíveis de preconceitos. 

Não é difícil concluir que estes jovens que massacraram homossexuais na noite passada foram motivados por um impulso cego, mas, de forma idêntica, as manifestações fascistas assustadoras das últimas semanas contra nordestinos, mesmo que largamente tratado na mídia – ou exatamente por isso! – resultaram em coisa não menos pior, com o espancamento e assassinato de uma jovem de vinte e um anos. 

O ponto comum que prevalece nessas diferentes e diárias manifestações da barbárie é a comprovação mais uma vez de que o fascismo identifica no simples fenômeno da existência humana a verdadeira origem motivacional de sua destruição – independente se judeu, negro, gay, pobre, nordestino, mulher, etc., pois o problema do Capital continua a ser o trabalho (= homem), e o problema do homem (= trabalho), continua a ser o capitalismo. A tese clássica de que os regimes fascistas constituem a última cartada política do capitalismo em momentos de crise aguda permanece atual, só que, com um acréscimo importante: as crises agudas deste corpo histórico gangrenado se tornaram permanentes. 

A vertigem do discurso pequeno-burguês não nos deixa compreender a verdadeira origem dos problemas. Assim, por exemplo, na maioria das manifestações de repúdio à violência, apresenta-se alternativas para a solução do problema que geralmente reproduzem as mesmas condições que o geraram, conforme aquela velha máxima miserável de julgar a vida: “A tentação é insuportável, mas erra quem se deixa cair em tentação”.

Até quando a moderna “sociedade digital globalizada", com seu conforto de mentira e suas luzes coloridas, poderá esquivar-se das sombras e das contradições que habita em suas mais "remotas" profundezas?
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(João)


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A José Saramago (sem luto)

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Já se foi, manso, mais um José.
Tão Saramago.

Na terra choramos sem fôlego,
nosso destino lamentável.
Choro dos ofendidos
Má-sina dos afogados...

Ele lembrou que o problema,  
Tá em quem manda, o Estado.
Pois o mundo dado aos homens,
É só pelo Homem alterável.

No continente alguém disse:
- O futuro nos pertence!
Lendo num de seus livros.
Enquanto isso, na ilha,

em seu último suspiro,
Deve de ter pensado:

- Aos que ficam, só resta a luta, 
por um futuro emancipado.


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