quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Ney, um pequeno gigante.


Seu corpo é um campo de batalha. Cada movimento é uma provocação calculada. A expressiva feminilidade, nele, convive fecundamente num corpo de homem, que jamais estará em questão. É essa naturalidade assombrosa, pela qual o gesto feminino mais genuíno renasce num corpo que se quer masculino - é nessa harmonização de pólos antagônicos, que o humano alça voo, e ergue-se, acima da vida cindida, o artista.

Ney Matogrosso é um artista. Faz questão de alimentar a tensão do olhar alheio. A tensão em relação a todas as versões mastigadas da vida corporal. Dialoga com a censura, o tempo inteiro. É como se aguardasse a chegada dos bárbaros, que, a qualquer momento, vão invadir o palco... Mas não! Ney imobiliza o olhar dos censores, fascina os fascínoras, as carolas. Como diz Eduardo Galeano: o corpo é uma festa!

Observem a importância da imobilidade enquanto gesto, o silêncio como linguagem, e não sua negação: os momentos em que Ney Matogrosso imobiliza-se faz lembrar, em tudo, uma estátua grega. No porte, no detalhe. 

É incrível a semelhança. Sempre que vemos uma estátua grega, de homem, sentimos uma interrogação. Um sentimento de harmonia. Onde? Sem deixar de ser masculino, é levemente afeminado. Em algum ponto, sutil, abre-se mão da masculinidade. Às vezes, na curva de um joelho; no leve arquear da coluna; na entonação do quadril; na posição de um pé. 

A sociedade grega, patriarcal a mais não poder, sabia abrir-se, no entanto, para o lado feminino do cosmos (o que fecunda), reconhecia, nos poros, a importância da mulher. Resíduos cristalizados de um passado matriarcal.

Caberia investigar a significação de um artista como Ney Matogrosso, dentro de uma sociedade como a brasileira. Sempre ficamos com a impressão de que Ney responde a uma censura implícita. Muitos gostariam de matá-lo, não há dúvida. Por isso, talvez, a estranha solidão que emana de sua figura.

Não se dá a importância devida a Ney Matogrosso.

Trata-se, apenas, de um dos maiores artistas do país. Completo. E dever-se-ia acrescentar, a voz? Das mais belas vozes de nossa cultura. Apesar do 1, 60 de altura, Ney Matogrosso é um gigante.









sábado, 31 de agosto de 2013

Conserto


Na franja dos dias esqueço o que é velho
E o que é manco.
E é como te encontrar
Corro a te encontrar.

(Ao que vai nascer - Milton Nascimento)




O que viu exatamente? Melhor seria perguntar-se sobre o valor da pergunta: de que vale perguntar-se pelo que viu? Nada! De nada vale. Até porque, no caso, ouviu e não viu:

      - Bela orquestra, hein Rotvic! Gritou, de passagem, o colega da outra turma, piano. 

Assim costumava diferenciar os colegas: fulano... ah sim! Piano! Sicrano, violino. Beltrano flauta. E ele, Rotvic, baixo - retomou o fio de suas indagações, depois da interrupção abrupta do colega piano. Partiu da conclusão anterior: sim, no fundo, não ouviu nada da orquestra. Coisas assim acontecem, e quando batem, não deixam dúvidas. O amor não (se) permite dúvidas... Certo? Não! Quer dizer... Rotvic entornava pelas calçadas, contraditoriamente.

Lembrou-se de Magda bandolim. Com ela poderia exprimir-se, revolvendo sua quase-vocação, talvez-vocação, pseudo-vocação, que, ao mesmo tempo, eram dois caminhos correndo em direções opostas. A incerteza de seu destino, o emaranhado das dúvidas, poderia ser um sinal de sua vocação, ou, pelo contrário, a vitória do medo e da insegurança - capaz, apenas, de incapacitá-lo: "O medo anda por fora, o medo anda por dentro...", cantou.

Magda aproximou-se. "Tudo bem Rotvic?". Enigmática, um quase sorriso. A cada fração de segundos mudava em outra. O olhar reconfortante virava-se em desconfiança. E revirava-se, novamente, compreensivelmente, em sua direção. Falou-se do concerto. "Eu gostei". "Eu, Magda, não senti nada...". Explicar que a Música é uma questão, explicar que a Música despertava-lhe questões. E Magda, ouvindo, enigmática e reconfortante; desconfiada e compreensiva. Ou. 

Analisava sua alma? Entrevia-lhe o talento, a aptidão, ou apenas ria-se por dentro? 

Magda, em sua alternância enigmática, talvez fosse a própria música. Via-o como tudo, ou nada. O não decifrar-se é sua decifração, sua essência. Olhava fixamente para Magda, um tanto enlouquecido, diríamos:
     
      - Ora, Rotvic! Não me olhe assim... Você parece um tanto enlouquecido.

Não se tratava de decifrar Magda, senão que, no caso, decifrá-la é saber-se decifrado por ela. É como a música. Ela deve saber-nos. Como o poema, entra em nós, e não o contrário, possessivo. Deixar-se largar-se. O enigma, sobre o significado de seus enigmas, era, pois, o enigma de Magda: amava-o, ou ria-se por dentro? Pouco importa! Talvez risse de seu temor, talvez risse de amor. Pouco importa. A chave é a manutenção da dúvida. Novamente, olhava-a, como se a escutasse com os olhos:

      - Ora, Rotvic, não me olhe assim, já falei... Você parece um tanto enlouquecido.

E ria, ria, como se não fosse nada, de dentro para fora. Não estranhava, nem temia, seu olhar barulhento. Magda sabia. A música explica-nos, e não o inverso. E por aí a explicamos, talvez. No barulho do tráfego, do sol, da indigência luciferina da tarde, Magda foi-se embora num ligeiro adeus, como se não fosse nada ir-se embora. Foi-se o bandolim, só restou o banzo, retinindo nos ouvidos de Rotvic. Ou talvez fosse o susto das buzinas.

Rotvic pensou mesmo em sua inapetência para o caos. Que, talvez, a sonora indigência da vida (como bigornas descompassadas) subtraísse, em segundos, o difícil aprendizado da harmonia. Aborto induzido, de nós mesmos. Teve medo. Tapou os ouvidos, com força, e recordou nitidamente do concerto. Magda! É preciso isolar as harmonias, preservá-las. É preciso amar Magda. É preciso odiar Melquíades. É preciso não morrer. É preciso salvar o bandolim da queda. É preciso viver com os homens. É preciso não assassiná-los. É preciso ter mãos pálidas, e anunciar o FIM DO...  Voltou-se. Procurou Magda no caminho. Magda se fora, como é natural. Um bandolim voa, vigésimo primeiro andar, espatifa-se no meio meio-fio. 
     
      - Caqui. Dois reais a bandeja!

Sentado no meio-fio farto de caqui, Rotvic descansava. O silêncio na cidade é uma ilha de absoluto. Pausa mágica. Do mesmo modo a imobilidade em meio a corpos tão ágeis. Sentado no meio-fio, farto, Rotvic era um contra-ponto absurdo, manifestação corpórea do silêncio - como era possível, nesse calor, sem qualquer refrigeração, estarem tão gelados - os caquis?

Cansado. Cansado Rotvic. Como não amá-lo? Ergueu-se apaziguado, o quase feliz entrou na estação. O maestro baixa os braços, os instrumentos emudecem, fulminados, o silêncio ergue-se como poeira, os pedaços do bandolim no asfalto, Magda, Magda de repente do outro lado da rua, restos - se restos há - de caquis. E o ar que pesa. Rotvic, Rotvic, Rotvic, Rotvic (é o som de uma locomotiva, reparem). Um nome sem origem. A princípio acreditou por muito tempo na origem talvez russa de seu nome. Engano seu: pense numa nota (musical), solitária, solta no ar... É cretino. Um nome sem origem é cretino. Sim, melhor seria chamar-se Cretino da Silva. Rotvic riu de si mesmo, por dentro, completamente desbaratinado. Compôs um samba.

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quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Moça linda bem tratada... Eu sou trezentos (Mário de Andrade)



Moça linda bem tratada.

Moça linda bem tratada,
Três séculos de família,
Burra como uma porta:
Um amor.

Grã-fino do despudor,
Esporte, ignorância e sexo,
Burro como uma porta:
Um coió*.

Mulher gordaça, filó,
De ouro por todos os poros
Burra como uma porta:
Paciência...

Plutocrata sem consciência
Nada porta, terremoto
Que porta de pobre arromba:
Uma bomba.


(* coió significa tolo, bobo, bocó. Quer dizer, na primeira estrofe, a moça, por mais que seja também "burra como uma porta", é bonita e bem tratada, portanto: "Um amor" - ironicamente, talvez. Já o "grã-fino do despudor", além de burro é coió, que dá no mesmo. E assim vamos). 

Eu sou trezentos...

Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cinquenta,
As sensações renascem de si mesmas sem repouso,
Ôh espelhos, ôh Pireneus! ôh caiçaras!
Si um deus morrer, irei no Piauí buscar outro!

Abraço no meu leito as milhores palavras,
E os suspiros que dou são violinos alheios;
Eu piso a terra como quem descobre a furto
Nas esquinas, nos táxis, nas camarinhas seus próprios beijos!

Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cinquenta,
Mas um dia afinal eu toparei comigo...
Tenhamos paciência, andorinhas curtas,
Só o esquecimento é que condensa,
E então minha alma servirá de abrigo.

(Mário de Andrade)


terça-feira, 20 de agosto de 2013

O amor, essa palavra


"Mas o amor, essa palavra... E você, temerosa de paixões sem uma razão de águas fundas, desconcertada e arisca na cidade onde o amor se chama com todos os nomes de todas as ruas, de todas as casas, de todos os andares, de todos os quartos, de todas as camas, de todos os sonhos, de todos os esquecimentos e recordações. Amor meu, não te amo por ti nem por mim nem pelos dois juntos, não te amo porque o sangue me faça te amar, amo-te porque tu não és minha, porque estás do outro lado, desse lado para onde me convidas a saltar e não posso dar o salto, porque no mais profundo de tudo você não está, e não te alcanço, não consigo passar para lá do teu corpo, do teu riso, há horas em que me atormento por saber que, apesar disso, tu me amas também (como gosto de usar o verbo amar, com que pretensão vou deixando cair o verbo amar sobre os pratos, os lençõis e os ônibus), atormenta-me com teu amor que não te serve de ponte, e uma ponte não se apoia de um só lado, Le Corbusier jamais faria uma ponte apoiada de um só lado e não me olhes com esses olhos de pássaro, para ti a operação do amor é muito fácil, tu ficarás curada antes de mim, e a verdade é que não amo aquilo que amas em mim. É claro que tu de pressa te curarás, porque vives na saúde, depois de mim será outro, isso muda como os espartilhos. É tão triste perceber que você deseja um amor passaporte, amor alpinista, amor chave, amor revólver, amor que lhe dê os mil olhos de Argos, a ubiquidade, o silêncio no qual a música é possível, a raiz na qual se poderia começar a tecer uma língua. E é triste porque tudo isso dorme um pouco em ti mesma, seria suficiente submergi-la num copo de água, como uma flor japonesa, e estou certo de que, pouco a pouco, começariam a brotar pétalas coloridas, as formas curvas aumentariam, tua beleza cresceria. Doadora de infinito, eu não sei tomar, perdoa-me. Ofereço-te uma maçã e tu deixou os dentes sobre a mesa-de-cabeceira. Stop, tudo já está bem, assim. Também sei ser grosseiro, note bem. Mas note bem, porque não é gratuito.

Por que stop? Por medo de começar as fabricações, são tão fáceis. Tira-se uma ideia de algum lugar, um sentimento de outra estante, amarra-se tudo com ajuda de palavras, cadelas negras, e resulta que te amo. Total parcial: te amo. Total geral: te amo. Muitos amigos meus vivem assim, sem falar de meus tios e primos, convencidos do amor-que-sentem-por-suas-esposas. Da palavra aos atos meu amigo; em geral, sem verba não há comida. Aquilo a que muita gente chama amar consiste em escolher uma mulher e casar com ela. Escolhem, juro, já o vi. Como se se pudesse escolher no amor, como se amar não fosse um raio que quebra os ossos e nos deixa paralisados no meio do pátio. Tu dirás que eles escolhem porque-a-amam; creio que é o contrário. Não se pode escolher Beatriz, não se pode escolher Julieta. Não podemos escolher a chuva que nos vai encharcar até os ossos quando saímos de um concerto. Mas estou sozinho no meu quarto, estou caindo nas artimanhas da escrita, as palavras, cadelas negras, vingam-se como podem, mordem-me debaixo da mesa. Deve dizer-se embaixo ou debaixo? Mordem de qualquer modo. Tenho medo desse proxenetismo, de tinta e de vozes, as palavras, mar de línguas lambendo o cu do mundo. Há mel e leite debaixo da sua língua... ".


(Júlio Cortázar, O Jogo da Amarelinha)

domingo, 11 de agosto de 2013

Os medos do regime.

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I

Um estrangeiro, voltando de uma viagem ao Terceiro Reich
Ao ser perguntado sobre quem realmente governa lá, respondeu:
O medo.


II

Amedrontado
O erudito para no meio de uma discussão e observa
Pálido, as paredes finas de seu gabinete. O professor
Não consegue dormir, preocupado
Com uma frase ambígua que o inspetor deixou escapar.
A velha senhora na mercearia
Coloca os dedos trêmulos sobre a boca, para conter
O xingamento sobre a farinha ruim.
Amedrontado
O médico vê as marcas de estrangulamento em seu paciente, e cheios
de medo
Os pais olham os filhos como se olhassem para traidores.
Mesmo os moribundos
Amortecem a voz que sai com dificuldade, ao
Despedirem-se dos seus parentes.


III

Mas também os policiais (camisas-marrons)
Tem medo do homem que não levanta os braços
E ficam aterrorizados diante daquele
Que lhes deseja um bom dia.
As vozes agudas dos que dão ordens
Tem tanto medo quanto os guinchos
Dos porcos, a esperar a faca do açougueiro, e os mais gordos traseiros
Transpiram medo nas cadeiras do escritório.
Impelidos pelo medo
Eles irrompem nas casas e fazem buscas nos sanitários
E é o medo que os faz
Queimar bibliotecas inteiras. Assim
O temor domina não apenas os dominados, mas também
Os dominadores.


IV

Por que
Temem tanto a palavra clara?


V

Em vista do poder imenso do regime
De seus campos de concentração e câmaras de tortura
De seus bem nutridos policiais
Dos juízes intimidados ou corruptos
De seus arquivos com listas de suspeitos
Que ocupam prédios inteiros até o teto
Seria de acreditar que o poder não temeria
Uma palavra clara de um homem simples


VI

Mas esse regime lembra
A construção do assírio Tar, aquela fortaleza poderosa
Que, diz a lenda, não podia ser tomada por nenhum exército, mas que
Através de uma única palavra clara, pronunciada no interior
Desfez-se em pó.


(Bertolt Brecht)

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sexta-feira, 23 de novembro de 2012

São Paulo precisa morrer



“A este ponto chegamos e na comissão de frente intelectuais mortos de medo de abrir a caixa de Pandora das transformações não triviais”.  

(Paulo Eduardo Arantes – Duas vezes pânico na cidade)


O que acontece com São Paulo? Num artigo de 2006, Paulo Arantes, falando dos “ataques do PCC” ocorridos em maio daquele ano, diz: “São Paulo é uma cidade morta”. A resposta é suficiente, quando se trata da grande mídia, para quem a violência dos últimos dias é uma exceção à regra: São Paulo, no caso, é uma espécie de matrona romântica e civilizada, merecedora de respeito.  Caecus 1, que não merecem, nem pedem argumentos.

Já para os teimosos de plantão, que ainda investigam - em tempos de social-democracia irrestrita e imoderada - as ultrapassadas (e assim mesmo atuais) razões históricas, o resto do artigo tem bastante interesse. A começar pelo título: “Duas vezes pânico na cidade”. Serve hoje, pois, de algum modo, as chacinas dos últimos dias são como um segundo capítulo dos ataques de 2006.

E os outros paralelos? Um deles, bastante óbvio: os encapuzados, dizem, que chegam matando seriam membros de “grupos de extermínio”, já existentes no “período militar” (designação completamente imprecisa) com características análogas.

Mas os grupos de extermínio, comboios da morte, etc. são um lado do problema. A esse respeito, a confusão entre as versões disponíveis é cômica, e trágica: ora os exterminadores, ora o Partido (como o chamam os correligionários do PCC), mas, de todas as versões disponíveis, nenhuma, agonicamente, é capaz de abarcar a totalidade do fenômeno. Trabalho de forças ocultas, visivelmente fora de controle.

E os representantes do poder oficial? Absurdamente ingênuos, ou altamente comprometidos? Pois, do contrário, como explicar que os mesmos, em suas declarações, parecem saber menos do que a própria população?

Algo de instrutivo se revela nesse “ocultismo da ordem”: para os “artistas que protestam”, coloca-se a pergunta: Como “representar” (ou apresentar), esteticamente, o descontrole necessário do capital enquanto força histórica? Força material que rege a vida à luz do dia (e da noite), ao mesmo tempo visível em suas causas, mas intocável em seus mecanismos de reprodução.

A violência em curso não teria algo a dizer nesse sentido, isto é, expressão máxima e real, quer dizer, não “representada”, deste processo de autonomização dos interesses do dinheiro? Não é novidade o fato de que a força destrutiva inevitável do capital precisa justamente da destruição consumada para se tornar convincente.

O título do artigo, “Duas vezes pânico na cidade”, também força por atualizar, em condições nossas, a vermelha fórmula, sábia, porém gasta pelo uso, que diz: “primeiro como tragédia, depois como farsa”. O conteúdo de verdade, aqui, potencializa-se a ponto de não caber mais no próprio molde, baralhando tudo, quando a farsa já é trágica em si mesma, coincidindo, ambas, na permanente violência da acumulação originária, repetida, parece, toda vez que o arranjo provisório do poder (legal e ilegal) se desestabiliza.

Outro paralelo, no artigo, nos fala de uma “desconexão social das elites”, a respeito de uma classe-média alta que teria abandonado para o futuro a construção do próprio futuro. Fenômeno de desconexão social, que, em todo caso, é mundial, e o exemplo citado é Londres, onde a guerra contra o terror islâmico paralisou a cidade. Para não falarmos de Nova York, ou o problema da imigração na França.

E os paralelos se sucedem, traçando coordenadas: em contraposição, por exemplo, ao desligamento social das “elites” (no jogo ideológico, o uso insistente de um termo pode revelar sua inadequação, ou falta de exatidão, cobrando, por isso, a utilização de aspas. É o que ocorre frequentemente com a expressão “elite” e tantas outras. Trata-se apenas de um “escrúpulo” conceitual, talvez, mas que o discurso petista, por exemplo, ignora, quando se refere insistentemente à ”classe-média”, contradizendo-se na medida em que esvazia o conceito por “excesso de uso”. Pergunto-me se o simples uso das aspas, tão inofensivo em sua dualidade conceitual, não poderia complicar a manutenção do poder nas mãos do PT), como dizíamos, o contraponto do desligamento é o desalento e o abandono político dos trabalhadores nas periferias. Pior: segundo Paulo Arantes, até mesmo o desalento dos trabalhadores, quer dizer, o medo, não lhes pertence mais, roubado que fora.

Espécie de dupla impotência: paradoxalmente, há uma incapacidade de exprimir sequer um medo autêntico, numa situação, entretanto, em que se justificaria a autenticidade do medo. E isto por que:

a população atônita e em pânico: ou melhor, dizendo que está em pânico, quando perguntada, porque é isto que ouve, vê e lê [na mídia] a respeito de seu suposto estado de espírito

No ponto em que se fala dos trabalhadores, fecham-se as coordenadas. A situação dos pretos, pobres e delinquentes, jovens evangélicos ou não, mortos antes mesmo de tomarem consciência do que significa estar vivo. Aqui, aliás, no horizonte de auto-representação da classe, é que se encontra a chave da “caixa de Pandora das transformações não triviais”.

Vejamos: de todos os paralelos traçados no artigo, há um forte, que faz analogias insuspeitadas entre os fatos do presente e uma data distante: a greve geral ocorrida em São Paulo em 1917. Segundo Paulo Arantes, na visão daquele motim da nova classe operária, liderada por anarquistas, “afloram profeticamente pavores urbanos vindouros”.

À primeira vista, são escaladas de forças contrárias: repressivas e fascistas atualmente, e libertárias, legítimas em 17. Ocorre que, para as elites do período, habituadas no trato com escravos, o modelo da greve geral, tipicamente europeu, soava monstruoso demais, assustador, suscitando manifestações de repulsa patriarcal. O povão nas ruas, organizado exclusivamente para acabar com a “paz pública”.

Noutras palavras, o modo pelo qual as elites interpretaram o motim guarda afinidades surpreendentes com a visão que a mídia e as “elites” atuais fazem do PCC. O velho jargão: independentemente da condição real, jamais se justifica a desordem, o que, em outras palavras, significa uma incompreensão pura das raízes sociais do crime organizado.

Qual o significado de uma reação similar da elite nos dois momentos, ou melhor: qual o significado de uma mesma reação em relação a “inimigos” tão diferentes?   

Nota:

1 – Os antigos romanos utilizavam o termo para designar o que é cego, invisível, duvidoso, etc. Utiliza-se aqui respeitando, obviamente, toda a dubiedade da palavra.


João .



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quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Revolvida.

Esta noite andei
pelas ruas de Lisboa
e “calles” d’Espanha
pra me descobrir mestiça.

Moura d’África,
gema pernambucana,
cabeça chata,
perna fina, e muita,
muita gana,
(alguma preguiça).

Noite em que me vesti
de odalisca,
rompi correntes,
dancei samba;
porque enfim descobri:
meu coração é d’África,
das águas mediterrâneas!

Lá de onde tudo emana
e se explica
a cabocla urbana,
nem preta, nem branca,
mas cáustica: - saariana.

Nesta noite desvendei
a raiz mais profunda
do que nunca sossega
em minh’alma aflita
e sempre disposta
ao amor e à luta:

Fui a Portugal, a Espanha,...
dei n’África:
retornei mais humana.

(m. r.)