domingo, 20 de março de 2011

Realismo do Grotesco em ‘Almas Mortas’ de Gógol.


“Todos nós saímos de Gógol”.

(Dostoievski).


O conhecimento da vida cotidiana da Rússia no séc. XIX, em seu mais remoto e variado matiz, só a literatura pode fornecer. Mas, no caso de Gógol, por exemplo, sem um conhecimento histórico mínimo de fundo, acharíamos, talvez, menos graça na caracterização mordaz de seus personagens: sempre abusivos e despóticos. Aos bandidos tudo se perdoa frente à “ingenuidade” de seus métodos, fingindo-se ignorar, inclusive, a natureza pouco angelical de seus propósitos. Nesses termos, como não pensar no Brasil: a essência da lei é a infração da lei.

Reconhecemos pegadas machadianas na ironia de Gógol, ou mais propriamente o contrário. Talvez seja maior o acabamento na construção dos romances de Machado, em que a elaboração formal desvela de forma sutil, quase sem pretender, mecanismos psicológicos de classe. Já em Gógol há uma “pretensão edificante”; uma espécie de “ auto-comiseração” do narrador, ausente na narrativa machadiana. Em Gógol o narrador jura não sentir a menor vergonha frente a “fraqueza” de seus personagens, apesar de ser inútil o chamado à redenção moral após a exposição de quadro tão decadente. Nas últimas páginas de “Almas Mortas”, por exemplo, o narrador torna-se “sério” e cobra responsabilidade cívica dos leitores; mas, vale dizer, é tarde demais: a qualidade do próprio romance já não admite a seriedade.

Há muitos outros traços de “Almas Mortas”, tal como a lógica da mercadoria mediando as relações humanas, quando, por exemplo, compara-se os personagens com coisas inanimadas e animais - pedras, casas, empadas de frango, cavalos, etc. Ou a realidade externa, o nível espacial da narrativa, em que as diferentes localidades refletem o caráter de seus proprietários; irradiando-se inclusive como elemento definidor de personagens menores, principalmente camponeses (mujiques), que gravitam à sombra de seus donos, os “grandes”; etc. “Almas Mortas”, em suma, é a trajetória do personagem Tchitchikov, senhor proprietário de muitas almas de camponeses, “Consultor Civil do Estado”, que passa pela casa de diversos outros proprietários com um interesse comercial um tanto mórbido e obsessivo: comprar almas de camponeses mortos; para constar numericamente, ou por sandice de “colecionador” – só ao fim do romance sabemos seu real interesse.

Apresento alguns trechos da obra, que talvez façam sentir a força e a ironia desse grande realista.

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O narrador nos apresenta Nosdriov, figura que o herói conheceu em sua jornada:

“De certo modo, Nosdriov era uma personagem histórica. Nenhuma reunião de que ele participasse acabava sem uma história qualquer, tanto que ele, ou acabava a reunião de “braços dados” com a polícia, ou os próprios companheiros eram forçados a empurrá-lo para fora. Ou embebedava-se até ficar reduzido a um riso ininterrupto, ou então acabava com vergonha das próprias mentiras. E mentia sem a menor necessidade: de repente, contava que tinha um cavalo de pelo azul ou cor-de-rosa, a ponto dos ouvintes acabarem por se afastar dele, dizendo: “Eh, meu velho, estás passando da conta” (p. 85)

Assim era Nosdriov! Quem sabe dirão que ele é um tipo superado, que Nosdriov não existe mais hoje em dia. Infelizmente, não terão razão os que assim falarem. Nosdriov ainda permanecerá por muito tempo nesse mundo, e não será fácil exterminá-lo. Ele está entre nós por toda parte e, quiçá, apenas traja uma casaca diferente; mas os seres humanos são superficiais e pouco perspicazes, e um homem de roupa diferente, lhes parece um outro homem”. (p. 86-7)

Já aqui, o narrador descreve uma “agregada” do Sr. Sobakêvitch, proprietário ao qual Tchitchikov está em visita com o objetivo de arrematar mais algumas “alminhas” de camponeses mortos:

“Para o quarto lugar na mesa logo surgiu uma, é difícil definir com segurança, senhora ou senhorita, parenta, governanta, ou simplesmente uma agregada da casa. Há certos indivíduos que existem no mundo não como um objeto, mas como pintinhas ou manchinhas sobre um objeto. Sentam-se sempre no mesmo lugar, mantêm a cabeça na mesma posição, são quase tomados por peças de mobiliário; e no entanto, em algum recanto, principalmente na despensa ou na cozinha, descobre-se que... oh meu deus, oh!”. (p. 115)

O narrador descreve agora o anfitrião Sobakêvitch:

“Parecia que naquele corpo gigante não existia alma nenhuma, ou, se existia, situava-se não no lugar devido, mas, como um bruxo, a alma está envôlta numa casca tão grossa que como quer que se movesse no fundo daquele corpo não conseguia produzir qualquer comoção na superfície...”. (p. 116)

Por fim, o próprio Tchitchikov, tão mesurado e simpático com Sobakêvitch, formula “mentalmente” sua opinião a respeito do mesmo, vendo-o “pelas costas”, por assim dizer:

“Quando olhou para aquele costado que ia na sua frente, amplo como o lombo de um cavalo, e para suas pernas que pareciam os postes de São Petersburgo, não pôde deixar de exclamar mentalmente: ‘Será que já nasceste assim, urso, ou ficaste ursificado com a vida neste buraco distante, amofinando seus mujiques com sua avareza, e por causa de tudo isso te transformaste no que se costuma chamar de unha-de-fome”. (p. 120)

(Nicolai Vassílievitch Gógol, Almas Mortas, Abril Cultural, 1972)


(João)

domingo, 6 de março de 2011

Aedos Modernos

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A "normalidade" dos dias é um véu que encobre as verdadeiras leis do tempo. “Para tudo há seu tempo”, é uma frase esvaziada de sentido, e este vazio preenchia-se outrora pelo lugar agora vago da poesia. Ambigüidade desgastante, sem dúvida, mas, quem consegue hoje em dia tratar de literatura a não ser pela crença inconsciente de que ela compensará a monotonia dos fatos? Sabe-se que a ironia é a forma defensiva de que se reveste a verdade quando ninguém lhe dá ouvidos, nesse sentido, afirmo: e nunca a vida teve tanto poder sobre a arte!

As pessoas lançam-se de testa contra a vida, sem mirá-la nos olhos, engolindo-a por meio de ações definitivas e sem volta – como se a incoerência fosse caminho reto para a felicidade. Disse Guimarães Rosa que o nada é uma faca pouco afiada e sem cabo. Trata-se de uma redundância, claro: faca pouco afiada torna-se, toda ela, cabo; logo: não é faca. A repetição do óbvio transforma-o em novidade, por isso lanço mão de uma obviedade para vencer os recuos do niilismo contemporâneo, e digo: a literatura perde cotidianamente seu lugar na vida!

A contradição ilumina: seria instrutivo aproximar a conclusão dos dois últimos parágrafos.

É nesse cotidiano que se debate o poeta. A violência menos brutal é apresentada como alternativa á brutalidade generalizada. Mas, o que seria “violência menos brutal”? O poeta entoa seu lamento lavado à cafeína num canto escuro de alcova, mas -saibam todos- não são problemas habituais de maioridade poética: simplesmente torce para que o fim do dia não leve consigo a consciência e a luz de seu ofício  – que o tédio lhe seja piedoso.


João.

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O Grande Individualista

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Todos nós, como Mário de Andrade, estamos cansados de assombrações. Por isso ele dizia que há muito tempo não temia – nem podia temer - os gigantes. No folclore as lendas sofriam de escassez imaginativa e perdiam suas cores. Mas, fora isso, andava pela metrópole paulistana um outro tipo de assombração, de dar medo: o individualismo. Por estranho que pareça, Mário, que tinha enfrentado o medo do escuro, tirava notas harmoniosas, loas e versos sublimes no isolamento individual..

Sem dúvida que as preocupações artísticas, sociais e históricas convivem com o temor da loucura no isolamento. Não se trata, entretanto, do mesmo problema, já que, ao contrário, sabe-se muito bem que estão desencontrados e ameaçados de divórcio. Aí está a assombração. Mário de Andrade habitava o centro desta discórdia: a ética sempre cobrando atitudes duras, e a compreensão da própria miséria pedindo que sejamos amáveis. Desafio bom para almas halterofilistas.

Permito-me citar um exemplo numa “croniquinha” do autor, intitulada “Pessimismo Divino”. Mário defende abertamente que a linguagem é incapaz de expressar a totalidade da vida sensível. Como se fosse naturalmente esta sua função, tenta nos convencer de que a linguagem é uma forma de organizar e complementar a vida sensível. Novamente, só os bobos veriam nisso uma influência dos empiristas ingleses, ou coisa do tipo. Há uma força, um conflito, como queiram chamar, que conduz linearmente o questionamento do significado da arte para a reflexão sobre a linguagem, desta para experiência empírica e, finalmente, dirigindo-se para famigerada... experiência individual!

Coisas muito pouco inteligentes são ditas atualmente em cima desta mesma visão, tais como: a obra de arte só pode ser entendida pela singularidade do olhar individual; a arte é somente espontaneidade e impressão; só os pretensiosos tentam racionalizar a arte, etc. Mário de Andrade não chega a tanto. Preferia acreditar que não existe espontaneidade absoluta, ou seja, que a linguagem não possui a função de instrumento individual auto-operacional, mas, ao contrário, é uma manifestação social objetiva.

É que, em relação aos conservadores que pretendem amarrar a criação com “formalismos de latrina”, torna-se necessário defender o inefável, o sensivelmente inexprimível da arte. Redescobrir a individualidade que resiste à deformação pela compreensão histórica e social da vida. Assim era pouco mais ou menos um grande individualista (no sentido de independência e honestidade de opinião): sempre enfrentando o perigo da verdade, que é uma bomba lançada na mão dos outros com a esperança de que reste alguma coisa de útil depois da explosão...
         

João


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Emergência

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Há gestos não praticados
linguagem cifrada dos ventos.
Tão longe já vai o tempo
no qual não fomos iniciados...

Quantas cabeças desconhecem
o deslizar calmo dos dedos...
As cabeleiras sempre nascendo
e não há jeito de devassá-las.

Imperfeição delicada das faces
agravada por mãos inibidas.
Ternura pra sempre aplacada
na solidão vazia dos dias...

A nós, que a compreensão distingua as intenções
das consequências, apesar de tantos desmedidos...

que a força bruta jamais convença,
nem seduza os desprevenidos...

Distraídos, não venceremos!

 
João.

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sábado, 5 de março de 2011

Mulher em Três Tempos. (Murilo Mendes)

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Minha boca está no presente,
O meu olhar, no passado,
Meu ventre está no futuro:

Minha boca está na boca
Do meu marido atual,

Meu olhar está no olho
Do meu namorado antigo,

Meu ventre está no futuro
Do corpinho do meu filho.

(Murilo Mendes)

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sexta-feira, 4 de março de 2011

Mulher Vista do Alto de uma Pirâmide. (Murilo Mendes)

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Sendo março o mês “da mulher” postarei alguns poemas de Murilo Mendes à sua homenagem. Deveríamos desconfiar, entretanto, das verdades que dependem de datas fixas! Data de relembrarmos as mulheres? Homenageá-las por sua importância na vida? Nesse caso, então, a própria vida presta-lhes suficiente homenagem, que, como tal, dispensa o calendário.

Dizem que a poesia é bonita quando “rara”. O problema é que o “raro” em arte, normalmente, é o óbvio trazido à tona: beleza que o poeta resgata indicando sua necessária permanência, apesar da realidade ocultá-la continuamente. Deveríamos acrescentar, quem sabe, uma questão simples toda vez que somos assaltados pela beleza de um verso, de uma música, etc: "Se é tão óbvio, o que impede todos de ver?"  -  Enfim... Murilo Mendes:

Mulher Vista do Alto de uma Pirâmide.
                                     
Eu vejo em ti as épocas que já viveste
E as épocas que ainda tens para viver.
Minha ternura é feita de todas as ternuras
Que descem sobre nós desde o começo de Adão.
Estás engrenada nas formas
Que se engrenam em outras desde o começo dos séculos.
E outras formas estão ansiosas por despontarem em ti.
Quando eu te contemplo
Vejo tatuada em teu corpo
A história de todas as gerações.
Encerras em ti teus ascendentes até o primeiro par,
Encerras teu filho, tua neta e a neta de tua neta.
Mulher, tu és a convergência de dois mundos.
Quando te olho a extensão do tempo se desdobra ante mim.


(Murilo Mendes)



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Soneto para os Gatos.

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No mundo das bestas-feras,
O Homem, este seu dono,
Inveja-te o segredo dos justos:  
Sultão supremo do sono. 

O gato é uma esfinge,
Para o mármore que somos.
Salta, corre e olha:
Como as eras passam, Eros.

Pouco importa se passamos.
O homem assim resvala,
Às cegas, ressenti dor:

Recolhe mole, de repente,
Na malha do incrível sempre,
O feto morto do amor.


(João)
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