terça-feira, 20 de agosto de 2013

O amor, essa palavra


"Mas o amor, essa palavra... E você, temerosa de paixões sem uma razão de águas fundas, desconcertada e arisca na cidade onde o amor se chama com todos os nomes de todas as ruas, de todas as casas, de todos os andares, de todos os quartos, de todas as camas, de todos os sonhos, de todos os esquecimentos e recordações. Amor meu, não te amo por ti nem por mim nem pelos dois juntos, não te amo porque o sangue me faça te amar, amo-te porque tu não és minha, porque estás do outro lado, desse lado para onde me convidas a saltar e não posso dar o salto, porque no mais profundo de tudo você não está, e não te alcanço, não consigo passar para lá do teu corpo, do teu riso, há horas em que me atormento por saber que, apesar disso, tu me amas também (como gosto de usar o verbo amar, com que pretensão vou deixando cair o verbo amar sobre os pratos, os lençõis e os ônibus), atormenta-me com teu amor que não te serve de ponte, e uma ponte não se apoia de um só lado, Le Corbusier jamais faria uma ponte apoiada de um só lado e não me olhes com esses olhos de pássaro, para ti a operação do amor é muito fácil, tu ficarás curada antes de mim, e a verdade é que não amo aquilo que amas em mim. É claro que tu de pressa te curarás, porque vives na saúde, depois de mim será outro, isso muda como os espartilhos. É tão triste perceber que você deseja um amor passaporte, amor alpinista, amor chave, amor revólver, amor que lhe dê os mil olhos de Argos, a ubiquidade, o silêncio no qual a música é possível, a raiz na qual se poderia começar a tecer uma língua. E é triste porque tudo isso dorme um pouco em ti mesma, seria suficiente submergi-la num copo de água, como uma flor japonesa, e estou certo de que, pouco a pouco, começariam a brotar pétalas coloridas, as formas curvas aumentariam, tua beleza cresceria. Doadora de infinito, eu não sei tomar, perdoa-me. Ofereço-te uma maçã e tu deixou os dentes sobre a mesa-de-cabeceira. Stop, tudo já está bem, assim. Também sei ser grosseiro, note bem. Mas note bem, porque não é gratuito.

Por que stop? Por medo de começar as fabricações, são tão fáceis. Tira-se uma ideia de algum lugar, um sentimento de outra estante, amarra-se tudo com ajuda de palavras, cadelas negras, e resulta que te amo. Total parcial: te amo. Total geral: te amo. Muitos amigos meus vivem assim, sem falar de meus tios e primos, convencidos do amor-que-sentem-por-suas-esposas. Da palavra aos atos meu amigo; em geral, sem verba não há comida. Aquilo a que muita gente chama amar consiste em escolher uma mulher e casar com ela. Escolhem, juro, já o vi. Como se se pudesse escolher no amor, como se amar não fosse um raio que quebra os ossos e nos deixa paralisados no meio do pátio. Tu dirás que eles escolhem porque-a-amam; creio que é o contrário. Não se pode escolher Beatriz, não se pode escolher Julieta. Não podemos escolher a chuva que nos vai encharcar até os ossos quando saímos de um concerto. Mas estou sozinho no meu quarto, estou caindo nas artimanhas da escrita, as palavras, cadelas negras, vingam-se como podem, mordem-me debaixo da mesa. Deve dizer-se embaixo ou debaixo? Mordem de qualquer modo. Tenho medo desse proxenetismo, de tinta e de vozes, as palavras, mar de línguas lambendo o cu do mundo. Há mel e leite debaixo da sua língua... ".


(Júlio Cortázar, O Jogo da Amarelinha)

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