“A este
ponto chegamos e na comissão de frente intelectuais mortos de medo de abrir a
caixa de Pandora das transformações não triviais”.
(Paulo Eduardo Arantes – Duas vezes pânico na cidade)
O que acontece
com São Paulo? Num artigo de 2006, Paulo Arantes, falando dos “ataques do PCC”
ocorridos em maio daquele ano, diz: “São Paulo é uma cidade morta”. A resposta é
suficiente, quando se trata da grande mídia, para quem a violência dos últimos
dias é uma exceção à regra: São Paulo, no caso, é uma espécie de matrona romântica
e civilizada, merecedora de respeito. Caecus 1, que
não merecem, nem pedem argumentos.
Já para os teimosos
de plantão, que ainda investigam - em tempos de social-democracia irrestrita e imoderada
- as ultrapassadas (e assim mesmo atuais) razões históricas, o resto do artigo
tem bastante interesse. A começar pelo título: “Duas vezes pânico na cidade”.
Serve hoje, pois, de algum modo, as chacinas dos últimos dias são como um
segundo capítulo dos ataques de 2006.
E os outros
paralelos? Um deles, bastante óbvio: os encapuzados, dizem, que chegam matando
seriam membros de “grupos de extermínio”, já existentes no “período militar”
(designação completamente imprecisa) com características análogas.
Mas os grupos
de extermínio, comboios da morte, etc. são um lado do problema. A esse
respeito, a confusão entre as versões disponíveis é cômica, e trágica: ora os
exterminadores, ora o Partido (como o chamam os correligionários do PCC), mas,
de todas as versões disponíveis, nenhuma, agonicamente, é capaz de abarcar a
totalidade do fenômeno. Trabalho de forças ocultas, visivelmente fora de
controle.
E os
representantes do poder oficial? Absurdamente ingênuos, ou altamente
comprometidos? Pois, do contrário, como explicar que os mesmos, em suas declarações,
parecem saber menos do que a própria população?
Algo de
instrutivo se revela nesse “ocultismo da ordem”: para os “artistas que protestam”,
coloca-se a pergunta: Como “representar” (ou apresentar), esteticamente, o
descontrole necessário do capital enquanto força histórica? Força material que rege
a vida à luz do dia (e da noite), ao mesmo tempo visível em suas causas, mas
intocável em seus mecanismos de reprodução.
A violência em
curso não teria algo a dizer nesse sentido, isto é, expressão máxima e real,
quer dizer, não “representada”, deste processo de autonomização dos interesses
do dinheiro? Não é novidade o fato de que a força destrutiva inevitável do
capital precisa justamente da destruição consumada para se tornar convincente.
O título do
artigo, “Duas vezes pânico na cidade”, também força por atualizar, em condições
nossas, a vermelha fórmula, sábia, porém gasta pelo uso, que diz: “primeiro
como tragédia, depois como farsa”. O conteúdo de verdade, aqui, potencializa-se
a ponto de não caber mais no próprio molde, baralhando tudo, quando a farsa já
é trágica em si mesma, coincidindo, ambas, na permanente violência da
acumulação originária, repetida, parece, toda vez que o arranjo provisório do poder
(legal e ilegal) se desestabiliza.
Outro
paralelo, no artigo, nos fala de uma “desconexão social das elites”, a respeito
de uma classe-média alta que teria abandonado para o futuro a construção do
próprio futuro. Fenômeno de desconexão social, que, em todo caso, é mundial, e
o exemplo citado é Londres, onde a guerra contra o terror islâmico paralisou a
cidade. Para não falarmos de Nova York, ou o problema da imigração na França.
E os paralelos
se sucedem, traçando coordenadas: em contraposição, por exemplo, ao desligamento social das “elites” (no
jogo ideológico, o uso insistente de um termo pode revelar sua inadequação, ou
falta de exatidão, cobrando, por isso, a utilização de aspas. É o que ocorre
frequentemente com a expressão “elite” e tantas outras. Trata-se apenas de um “escrúpulo”
conceitual, talvez, mas que o discurso petista, por exemplo, ignora, quando se
refere insistentemente à ”classe-média”, contradizendo-se na medida em que esvazia
o conceito por “excesso de uso”. Pergunto-me se o simples uso das aspas, tão
inofensivo em sua dualidade conceitual, não poderia complicar a manutenção do
poder nas mãos do PT), como dizíamos, o contraponto do desligamento é o
desalento e o abandono político dos trabalhadores nas periferias. Pior: segundo
Paulo Arantes, até mesmo o desalento dos trabalhadores, quer dizer, o medo, não
lhes pertence mais, roubado que fora.
Espécie de
dupla impotência: paradoxalmente, há uma incapacidade de exprimir sequer um
medo autêntico, numa situação, entretanto, em que se justificaria a
autenticidade do medo. E isto por que:
“a população atônita e em pânico: ou melhor, dizendo que está em pânico,
quando perguntada, porque é isto que ouve, vê e lê [na mídia] a respeito de seu
suposto estado de espírito”
No ponto em
que se fala dos trabalhadores, fecham-se as coordenadas. A situação dos pretos,
pobres e delinquentes, jovens evangélicos ou não, mortos antes mesmo de tomarem
consciência do que significa estar vivo. Aqui, aliás, no horizonte de auto-representação
da classe, é que se encontra a chave da “caixa de Pandora das transformações
não triviais”.
Vejamos: de
todos os paralelos traçados no artigo, há um forte, que faz analogias
insuspeitadas entre os fatos do presente e uma data distante: a greve geral
ocorrida em São Paulo em 1917. Segundo Paulo Arantes, na visão daquele motim da
nova classe operária, liderada por anarquistas, “afloram profeticamente pavores urbanos vindouros”.
À primeira
vista, são escaladas de forças contrárias: repressivas e fascistas atualmente,
e libertárias, legítimas em 17. Ocorre que, para as elites do período,
habituadas no trato com escravos, o modelo da greve geral, tipicamente europeu,
soava monstruoso demais, assustador, suscitando manifestações de repulsa patriarcal.
O povão nas ruas, organizado exclusivamente para acabar com a “paz pública”.
Noutras
palavras, o modo pelo qual as elites interpretaram o motim guarda afinidades
surpreendentes com a visão que a mídia e as “elites” atuais fazem do PCC. O
velho jargão: independentemente da condição real, jamais se justifica a
desordem, o que, em outras palavras, significa uma incompreensão pura das
raízes sociais do crime organizado.
Qual o significado de uma reação similar da elite nos dois momentos, ou
melhor: qual o significado de uma mesma reação em relação a “inimigos” tão
diferentes?
Nota:
1 – Os antigos
romanos utilizavam o termo para designar o que é cego, invisível, duvidoso,
etc. Utiliza-se aqui respeitando, obviamente, toda a dubiedade da palavra.
João .
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